“Racismo em Famílias Inter-Raciais: Livro Aborda a Realidade Além da Ficção”
O tema do racismo no ambiente familiar é central na narrativa da personagem Isabel, protagonista do livro “Inverno”, escrito pela autora piauiense Veronica Botelho, disponível pela editora e-Galáxia. Nascida de uma união inter-racial, Isabel é criada por uma família predominantemente branca, e assim, se depara com as tensões cotidianas que permeiam as dinâmicas de lares inter-raciais. Desde sua infância, ela percebe a presença insidiosa do racismo manifestando-se em sutilezas do dia a dia, refletindo as complexidades da identidade racial em um contexto familiar.
Isabel cresce sob os cuidados de sua mãe, Madalena, em Maceió, Alagoas, sem conhecimento sobre a identidade do pai. A única lembrança que tem dele é marcada por um abandono paternal, perpetuado pelos comentários racistas da avó, que a constantemente recrimina com a narrativa de abandono. No entanto, o enredo ganha uma nova dimensão quando Isabel descobre cartas do pai que desafiam a história contada pela avó, motivando-a a embarcar em uma jornada de autoconhecimento sobre suas raízes e ancestralidade.
A autora, Veronica Botelho, ressalta que a criação das histórias se inspira em suas interações com diversas pessoas negras retintas, que compartilham experiências marcantes sobre a vivência do racismo. Em entrevistas, Botelho revela que ouviu narrativas de microagressões enfrentadas diariamente em lares familiares e histórias de resistência silenciosa. Uma das reflexões mais impactantes que ela compartilha é sobre como muitos indivíduos desenvolvem estratégias emocionais para lidar com a pressão de viver em ambientes predominantemente brancos, onde frequentemente se sentem forçados a se encaixar ou, pior, a se tornar invisíveis.
Botelho destaca a dificuldade de discutir o racismo nas famílias, um assunto que muitas vezes é negligenciado ou suavizado. Isso se dá porque o ambiente familiar costuma normalizar comportamentos preconceituosos por meio de pequenas piadas, comentários e atitudes miradas que se perpetuam entre gerações sem um questionamento crítico. “Confrontar essa realidade é um desafio, pois há uma interseção entre amor e discriminação, o que torna o diálogo ainda mais complicado”, observa a autora.
O que a leva a escolher a literatura como meio de abordar essa questão é o desejo de escapar da dicotomia simplista entre mocinhos e vilões. Botelho procura transmitir a complexidade dos relacionamentos familiares em um contexto onde o racismo é uma presença constante. Para ela, ao se refletir em tais narrativas, os leitores podem iniciar diálogos árduos, porém necessários, sobre como o racismo se infiltra em suas próprias famílias e como esses debates podem se expandir para um ouvinte coletivo mais amplo.
É fundamental reconhecer que o racismo nas famílias inter-raciais é uma realidade. A psicológa social Lia Vainer Schucman, especialista em branquitude, analisa a questão em sua obra “Famílias inter-raciais, tensões entre cor e amor”. Ela argumenta que o preconceito nas famílias inter-raciais é um reflexo do racismo estrutural que permeia as relações sociais e institucionais. “Na estrutura familiar, assim como em outros contextos, existem hierarquias, onde questões de classe e gênero se cruzam”, explica Schucman, alertando para como essas dinâmicas afetam as interações em lares inter-raciais.
Com 33% das famílias brasileiras sendo inter-raciais, muitas delas reforçam estereótipos prejudiciais sobre indivíduos negros. Schucman compartilha relatos em que pessoas brancas frequentemente minimizam ou negam a negritude de seus familiares, descontextualizando suas identidades raciais em favor de um ideal que lhes é mais confortável.
Ademais, a psicóloga aponta para uma compreensão distorcida do racismo, onde muitos acreditam que essa problemática é exclusiva de contextos históricos como os EUA ou a África do Sul. “O racismo é um processo de hierarquização de valores, que pode se manifestar até em gestos considerados banais, como alisar o cabelo de uma criança negra”, diz Schucman, enfatizando a necessidade de revisar esses hábitos enraizados.
O impacto do racismo em lares inter-raciais pode ter consequências profundas para a saúde mental dos indivíduos envolvidos. O ambiente familiar, que deveria ser um espaço de segurança e acolhimento, muitas vezes torna-se um local de trauma e confusão. “Famílias que lidam bem com questões raciais tendem a criar filhos mais resilientes e capazes de enfrentar o racismo fora de casa”, aponta Schucman. Por outro lado, as crianças que experimentam racismo em casa muitas vezes internalizam essas experiências e se veem como o problema, em vez de questionar o sistema que perpetua a discriminação.
Na narrativa de “Inverno”, Isabel embarca em uma descoberta de sua herança ao se acercar de familiares como seu pai Renato e sua tia Clotilde, mudando-se para Aracaju e depois para a Itália, revelando-se em sua negritude. “A jornada de Isabel ressalta uma verdade fundamental sobre o brasil: enquanto nos orgulhamos de nossa multiculturalidade, é crucial reconhecer que isso não necessariamente representa um diálogo real entre diferentes culturas”, comenta Botelho.
Ela utiliza a analogia de uma conversa em grupo, onde algumas vozes são amplificadas enquanto outras permanecem silenciadas, para expor as desigualdades presentes nas interações multiculturais. Para a autora, a verdadeira transformação ocorre quando cada voz é ouvida e respeitada. A clareza e a aceitação da negritude e da cultura africana são passos imprescindíveis para o processo de redescoberta de vários indivíduos que, como Isabel, buscam sua identidade em meio a uma realidade muitas vezes hostil. Schucman conclui afirmando que, se a sociedade oferecer um valor positivo à negritude, o racismo poderia ser desmantelado, evidenciando sua natureza social e não essencial.